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O parcelamento previsto na Lei nº 11.941/2009 e o direito de migração
Em tempos de crise econômica, a edição da Medida Provisória 449/2008, posteriormente convertida na Lei nº 11.941/2009 foi vista pela grande maioria dos contribuintes com uma oportunidade para regularizar sua situação fiscal.
Em tempos de crise econômica, a edição da Medida Provisória 449/2008, posteriormente convertida na Lei nº 11.941/2009 foi vista pela grande maioria dos contribuintes com uma oportunidade para regularizar sua situação fiscal.
A aludida lei trouxe a possibilidade de parcelamento em até 180 meses de débitos federais e de migração de outros parcelamentos, nos seguintes termos:
Art. 1º Poderão ser pagos ou parcelados, em até 180 (cento e oitenta) meses, nas condições desta Lei, os débitos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil e os débitos para com a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, inclusive o saldo remanescente dos débitos consolidados no Programa de Recuperação Fiscal - REFIS, de que trata a Lei nº 9.964, de 10 de abril de 2000, no Parcelamento Especial - PAES, de que trata a Lei nº 10.684, de 30 de maio de 2003, no Parcelamento Excepcional - PAEX, de que trata a Medida Provisória nº 303, de 29 de junho de 2006, no parcelamento previsto no art. 38 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, e no parcelamento previsto no art. 10 da Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, mesmo que tenham sido excluídos dos respectivos programas e parcelamentos, bem como os débitos decorrentes do aproveitamento indevido de créditos do Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI oriundos da aquisição de matérias-primas, material de embalagem e produtos intermediários relacionados na Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados - TIPI, aprovada pelo Decreto nº 6.006, de 28 de dezembro de 2006, com incidência de alíquota 0 (zero) ou como não-tributados.
Além da ampla variedade de tributos que poderiam ser incluídos e do longo prazo, a Lei ainda trouxe benefícios relacionados à redução da multa e dos juros.
Ocorre que, para a surpresa de todos os contribuintes, em 22 de julho de 2009 foi publicada a Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 6, que estabeleceu novos parâmetros em relação ao funcionamento e organização do parcelamento, acabando por restringir, nos termos do artigo 35, a participação de pessoas jurídicas que já haviam parcelado seus débitos em outros programas.
Art. 35. Os débitos que tenham sido parcelados em modalidade diversa das especificadas no art. 4º, inclusive os que foram renegociados pela Lei nº 11.775, de 17 de setembro de 2008, não poderão ser pagos ou parcelados na forma desta Portaria.
Em síntese, de acordo com a referida Portaria Conjunta, somente aqueles que optaram pelos seguintes parcelamentos, ainda que excluídos, poderão migrar ou reparcelar os débitos oriundos do Programa de Recuperação Fiscal, de que trata a Lei nº 9.964, de 10 de abril de 2000, Parcelamento Especial, de que trata a Lei nº 10.684, de 30 de maio de 2003, Parcelamento Excepcional, de que trata a Medida Provisória nº 303, de 29 de junho de 2006, Parcelamento previsto no art. 38 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991; e Parcelamento previsto no art. 10 da Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002.
Interessante notar que, estranhamente, enquanto a permissão de inclusão integral aparece de forma clara no primeiro artigo da Lei 11.941/2009, a limitação aparece no apenas no antepenúltimo artigo da Portaria nº 6, capítulo destinado às disposições finais.
Ademais, vale destacar que o legislador tomou o cuidado de colocar a expressão "inclusive" entre os débitos parceláveis e as migrações de outros parcelamentos, deixando clara a inexistência de qualquer restrição.
Não é preciso muito esforço para perceber que os atos emanados por meio da Portaria que alteraram o conteúdo da lei ordinária mencionada são de natureza infralegal e, portanto, não têm competência para tais medidas.
Não há como se enfrentar a questão sem se apreciar os artigos 5º, II, e 37, da CF/88:
"Art. 5º (...).
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
(...)
Art. 37. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e, também, ao seguinte:
(...)"
O princípio da legalidade constitui um dos alicerces do Estado Democrático de Direito, na medida em que revela a busca dos ideais de Justiça através da garantia de que somente os eleitos possam fazer as leis.
O insuperável Mestre CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELO, em seu Curso de Direito Administrativo, 4ª. Edição, Malheiros Editores, págs. 47/48, em relação ao aludido princípio, comenta que:
"(...) Por isso mesmo é o princípio basilar do regime jurídico-administrativo, já que o direito administrativo (pelo menos aquilo que como tal se concebe) nasce com o Estado de Direito: é uma consequência dele. É o fruto da submissão do Estado à lei. É em suma: a consagração da idéia de que a Administração Pública só pode ser exercida na conformidade da lei e que, de conseguinte, a atividade administrativa é atividade sublegal, infralegal, consistente na expedição de comandos complementares à lei.
Para avaliar corretamente o princípio da legalidade e captar-lhe o sentido profundo cumpre atentar para o fato de que ele é a tradução jurídica de um propósito político, o de submeter os exercentes do poder em concreto - o administrativo - a um quadro normativo que embargue favoritismo, perseguições ou desmandos" (destacamos).
Importante registrar que a Lei nº 11.941/2009 em nenhum momento afasta a possibilidade de migração de outros parcelamentos, muito ao contrário, outorga benefícios a todos e ainda incentiva tal conduta.
Não é por outra razão que o art. 1º utiliza a expressão INCLUSIVE e não EXCLUSIVAMENTE para permitir a migração de outros parcelamentos.
Além disso, o fato de ter especificado o tratamento para a migração do REFIS, PAES, PAEX e do parcelamento ordinário também não serve de referência, pois as regras deste último são utilizadas de forma subsidiária em praticamente todos os demais.
O que se pretende dizer com isso é que é perfeitamente possível tecnicamente se migrar débitos que fazem parte de outros parcelamentos especiais para o novo.
A exigência de lei para regular a relação entre fisco e contribuinte é pacificada em nossa jurisprudência. O Excelso STF, quando do julgamento do Mandado de Segurança nº 20999, cuja decisão foi publicada no DJ de 25/05/90, assim tratou a matéria:
EMENTA
MANDADO DE SEGURANCA - SANCAO DISCIPLINAR IMPOSTA PELO PRESIDENTE DA REPUBLICA - DEMISSAO QUALIFICADA - ADMISSIBILIDADE DO MANDADO DE SEGURANCA - PRELIMINAR REJEITADA - PROCESSO ADMINISTRATIVO-DISCIPLINAR - GARANTIA DO CONTRADITORIO E DA PLENITUDE DE DEFESA - INEXISTENCIA DE SITUACAO CONFIGURADORA DE ILEGALIDADE DO ATO PRESIDENCIAL - VALIDADE DO ATO DEMISSORIO - SEGURANCA DENEGADA.
1. A CONSTITUICAO BRASILEIRA DE 1988 PRESTIGIOU OS INSTRUMENTOS DE TUTELA JURISDICIONAL DAS LIBERDADES INDIVIDUAIS OU COLETIVAS E SUBMETEU O EXERCICIO DO PODER ESTATAL - COMO CONVEM A UMA SOCIEDADE DEMOCRATICA E LIVRE - AO CONTROLE DO PODER JUDICIARIO. INOBSTANTE ESTRUTURALMENTE DESIGUAIS, AS RELACOES ENTRE O ESTADO E OS INDIVIDUOS PROCESSAM-SE, NO PLANO DE NOSSA ORGANIZACAO CONSTITUCIONAL, SOB O IMPERIO ESTRITO DA LEI. A RULE OF LAW, MAIS DO QUE UM SIMPLES LEGADO HISTORICO-CULTURAL, CONSTITUI, NO AMBITO DO SISTEMA JURIDICO VIGENTE NO BRASIL, PRESSUPOSTO CONCEITUAL DO ESTADO DEMOCRATICO DE DIREITO E FATOR DE CONTENCAO DO ARBITRIO DAQUELES QUE EXERCEM O PODER.
(...)
Especificamente em relação aos parcelamentos especiais, não é novidade o Poder Executivo tentar alterar o conteúdo e o alcance das Leis que os instituem por meio de atos administrativos, como portarias, instruções normativas, etc. Todavia, invariavelmente, nossos Tribunais têm rechaçado as tentativas. Senão vejamos:
PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. TRIBUTÁRIO. PARCELAMENTO. EXIGÊNCIA DE DÉBITO EM CONTA CORRENTE. IMPOSSIBILIDADE. PORTARIA Nº02/02 PGFN/SRF. PAGAMENTO MEDIANTE DARF. POSSIBILIDADE. 1. O Direito Tributário tem como princípio basilar a legalidade. 2. A modalidade de débito em conta como condição imposta pela Fazenda Nacional para deferir o parcelamento do débito tributário não encontra respaldo em lei. 3. A Lei nº 10.522/2002, em seu art. 10 e seguintes, prevê a possibilidade de parcelamento dos débitos existentes junto à Fazenda Nacional, em nada dispondo acerca da obrigatoriedade de débito automático em conta corrente, das parcelas acertadas, para a quitação do débito. 4. O art. 20, da Portaria PGFN/SRF nº 02/02, ao criar óbices ao instituto do parcelamento, não previsto na Lei nº 10.522/02, acabou por violar o princípio da reserva legal. 5. A própria Lei nº 10.522/02 instituiu em favor da Fazenda Nacional a garantia de rescindir, imediatamente, o parcelamento quando o contribuinte deixar de pagar duas parcelas, monstrando-se despiciendo a garantia do débito automático em conta corrente, como forma de assegurar a pronta satisfação do crédito tributário. 6. Recurso especial desprovido. (STJ, 1ª Turma, RESP - RECURSO ESPECIAL - 1085907, DJ de DJE DATA:06/08/2009)
TRIBUTÁRIO. REFIS. EXCLUSÃO. MANIFESTAÇÃO DA DESISTÊNCIA DE RECURSO ADMINISTRATIVO. DESNECESSIDADE DE REITERAÇÃO. VONTADE DE DESISTIR INSÍTA DA OPÇÃO. 1. Não se mostra razoável a exigência do rigor formal quanto à desistência do recurso administrativo, sob pena de exclusão da agravante do REFIS, conforme dispõe a Instrução Normativa SRF 93/2000, quando há demonstração contundente da confissão dos débitos fiscais e inclusão dos mesmos no parcelamento em questão. 2. A Instrução Normativa, sendo norma complementar não pode inovar ou modificar texto da lei (no caso dos autos a Lei nº 9.964/2000) ou do decreto que regulamente sob pena de violação ao princípio da reserva legal. 3. Desarrazoado querer obstar a fruição da benesse fiscal tão-só ao fundamento da inobservância da formalização da desistência, esta que ínsita ao ato implementado pelo aderente de declarar no REFIS o débito encartado no processo administrativo motivador da exclusão. 4. Se a finalidade do REFIS é debelar déficit existente nas contas, incentivando o pagamento mediante um série de benefícios, não há porque privilegiar a forma em detrimento da efetiva vontade do contribuinte. 5. Há que se reconhecer que foram preenchidas as condições impostas para a opção e manutenção da impetrante no parcelamento em questão.(TRF4, AMS 200272010042110, D.E. 11/03/2008)
Salta aos olhos que mais uma vez o Poder Executivo tentou restringir a aplicação da lei por meio de atos infralegais, situação totalmente desprovida de fundamento de validade.
Além disso, ao impedir o acesso ao parcelamento de contribuintes que estejam na mesma situação (débitos parcelados) a malsinada Portaria acabou por violar o princípio constitucional da igualdade tributária (150, II, da CF).
Não há qualquer justificativa constitucional ou lógica para se vedar a opção pelo parcelamento na forma da Lei nº 11.941/2009 a aqueles contribuintes que parcelaram os débitos em algumas modalidades de parcelamento e outras não.
Para se ter uma idéia da semelhança entre as situações, o parcelamento previsto na Lei nº 11.552/2007 (parcelamento especial) é praticamente idêntico ao previsto na Lei nº 10.522/2002 (parcelamento ordinário), a diferença entre eles, essencialmente, se limita ao prazo (enquanto no primeiro é de 120 meses, no segundo é 60 meses).
Nenhum dos dois oferece beneficio de redução de multa ou juros. Todavia, os optantes do parcelamento ordinário (ativos ou excluídos) poderão reparcelar seus débitos com descontos em alguns casos superiores a 50% (cinqüenta por cento), enquanto que os optantes do parcelamento especial não.
A situação é tão esdrúxula que até mesmo os contribuintes excluídos de outros parcelamentos, aqueles que não honram os seus compromissos, poderão optar.
À evidência, estamos diante de eminente sanção política contra os contribuintes que procuraram regularizar sua situação fiscal, desprovida de qualquer razoabilidade.
Aplicando as lições do Prof. CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO (1) ao caso concreto, podemos afirmar que não há, no dispositivo infra-legal impugnado, razoabilidade jurídica, assim entendida como a pertinência lógica entre o critério de discrimen e a finalidade da norma.
Enfim, como a lei não utiliza qualquer critério considerado válido pela Constituição Federal como o valor do faturamento, a atividade econômica, acaba criando benefício indevido para certo grupo de contribuintes, especialmente os inadimplentes
Corroborando os argumentos acima narrados, em recentíssima decisão, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região proferiu decisão determinando que a Secretaria da Receita Federal do Brasil fizesse a migração de contribuinte que optou pelo parcelamento previsto na Lei nº 11.552/2007 para o previsto na Lei 11.941/2009.